Os Ferreira

Começa a chover. 

Na sala de casa, duas pessoas assistiam tevê. Uma menina moça de avental-lilás e uma mulher silenciosa. Assistiam a um programa de perguntas e respostas, com prêmio em dinheiro. O apresentador deu uma sutil ajuda ao participante, que ainda assim não soube dizer em que estado ficavam as cataratas do iguaçu.

- Ah, essa era fácil. - Comentou Letícia humorada. Do seu lado, a mulher sentada na cadeira de rodas concordou sorrindo.

A chuva repentina engrossa o coro, obrigando Letícia a aumentar o volume. O cheiro bom de pernil assado, flutuando da cozinha até ali, dizia que mais 30 minutos estaria pronto. Não era isso, porém, que Letícia parecia estar aguardando.

Escutou, entre uma salva de palmas da platéia, recepcionando o novo participante, e um trovão, o estalido vindo da fechadura da porta. Dali a pouco, um rapaz aparece. Completamente encharcado, o cabelo caído como uma franja diante dos olhos.

- Bonito. – Disse ela, parada em pé, as mãos apoiadas no quadril. – Custava ter levado guarda-chuva?

- É só uma chuvinha. – Falou o rapaz sem-jeito.

Letícia implicava de gozação. Sabia que o irmão não gostava de andar de guarda-chuva. Melhor dizendo, ele não sabia andar de guarda-chuva. 

- Trouxe tudo?

- Tudo o que pôs na lista. – Raiden mergulhou a mão esquerda no bolso da bermuda, tirando um pedaço ensopado de papel já se desfazendo. – Toma, pode conferir.

Letícia pegou o pedaço de papel, amassou-o e o jogou no cesto de lixo da pia. Tratou de enxotar o irmão da cozinha, o conduzindo até o banheiro. Foi a um quarto e dali saiu com uma toalha, camiseta, cueca e calça. Pós tudo num banquinho, ao lado da porta do banheiro, junto a um par de chinelos. Voltou à cozinha e começou a retirar os produtos de dentro dos sacos plásticos molhado. Constava dos itens dois refrigerantes, dois pés grandes de alface, um pacote de uvas-passa e um de farinha-de-mandioca. 

Letícia ainda remexia os sacos, a procura de algo, quando Raiden entrou.

- Esqueceu da cebola.

Raiden mirou com inquietude os sacos plásticos o que bastou para Letícia obter confirmação positiva.

- Posso voltar lá se quiser. – Sugeri Raiden humorado.

- Só sobre meu cadáver. – Diz Letícia, ameaçando-o, de brincadeira, com uma concha caso tentasse sair.

Raiden compra a brincadeira. Letícia encena atacar, brandindo a concha como uma clava, mas é rapidamente contida pelo irmão que a prensa contra a parede, segurando suas mãos.

Os dois caem na risada. Letícia era a mesma dos tempos de criança. Humorada, divertida, bonita. Ah, como ela é bonita. Uns olhos, uma boca – Deus, que boca.
 
Repentinamente, Raiden se afastou. Parecia constrangido.

- Bem... Subia a rua quando a chuva aumentou. Pensei que podia ganhar dela, mas não deu.

- Pelo menos não vai precisar tomar banho. – Brinca Letícia.

Letícia era quinze centímetros mais baixa que o irmão. Não lhe causava incomodo, gostava de seu 1,65 de altura. Raiden também achava a irmã perfeita como era.

- E a mamãe? 

- Acordou quase agora. Está na sala, vendo tevê. Precisa ver como ela ficou linda com o vestido que pus nela.

Os dois deixam a cozinha e entram na sala, no momento em que o apresentador perguntava "Onde fica o Corcovado?", oferecendo uma entre quatro alternativas. Assistindo a tevê uma mulher de vestido vermelho longo, bordado com lírios-azuis. 

- Mãe... – Raiden se aproxima. – A senhora está divina.

Curvou-se e carinhosamente deu um beijo na testa da mãe.

A mulher retribui o afeto com um sorriso esquisito, meio alegre e meio cansado.

Raiden ligou o interruptor oculto entre os ramos artificiais do pinheiro, e a árvore se ascende com minúsculos pontos do tamanho de vaga-lumes, piscando alternadamente em três cores: vermelho, verde e azul.

Se pudesse, Linda diria que Raiden era um rapaz bonito. E, de fato, Raiden era mesmo bonito. Os olhos azuis davam ao rosto um ar jovem, sem torná-lo infantil. Os cabelos branco-acinzentados eram absolutamente naturais, e completamente despenteados. E não importava quanto gel fixador viesse a passar, o produto não fazia efeito sobre os cabelos que sempre voltavam a ficar em desordem. 

Bonito e cheio de estranhezas. Os que o conheciam, ou já conheceram, achavam-no estranho, até perigoso.

A professora do jardim-de-infância, foi a primeira a dizer que tomava conta de uma arma mortífera em forma de criança. Nas reuniões de pais não cansava de relatar à Linda as atitudes do filho. 

Raiden podia fazer coisas realmente espantosas na infância. Caso fosse o perseguidor no pega-pega, nenhuma criança tinha chances de lhe escapar. O contrário também se aplicava; ninguém o alcançava. Nas aulas de educação-física, se a atividade fosse futebol, ninguém o chamava – esqueciam melhor dizendo – pelo fato de que quando alguém lhe passava a bola, Raiden saia a mil pela quadra, sem dar chance aos outros, quando não desferia chutes de potência perigosíssima, de não raras vezes deixar o goleiro do time adversário, ou qualquer azarado que estivesse no caminho, desacordado.

Raiden ia sentando na poltrona, ao lado da mãe, quando Letícia o cutuca, lembrando-o que o chão da entrada não se secaria sozinho.

A meio-caminho da porta da sala, o terceiro irmão Ferreira aparece. 

- Noite, turma.

- Boa-noite. – Cumprimentaram Raiden e Letícia.

- Como vai o Sensei?

- Bem – Leuco não entra em detalhes. – Desejou-nos feliz-natal. Licencinha que vou troca de roupa. Vô num pé e volto noutro.

Leuco passou pela mãe, detendo-se para elogiar seu vestido, seguindo em direção o quarto.

Leuco estava diferente. Tanto Letícia como Raiden notaram. 




Anterior
Próximo