A Decisão de Breno

Chegar depois da meia-noite não preocupava Breno. Afinal, naquele horário, era difícil achar um táxi. Teria vindo com carro próprio, mas o honda city não sairia da oficina até depois do ano-novo.

Foram provavelmente os últimos a chegar, embora houvesse convidados a caminho da casa. Supereducado, o menino deseja feliz-natal ao taxista antes de descer do carro. Breno fica para pagar a conta. Olhou o taxímetro, o preço indicava R$18,45. Puxou a carteira do bolso e tirou uma cédula. Deu vinte reais. O troco de R$1,55 ficou de gorjeta.

Desceu austero, segurando entre as mãos um embrulho enfeitado por uma fitinha cor-de-rosa. O presente que sua mãe comprara, para que ele desse à senhora Franchesca. Deixado encima do rack da sala, Breno não teria visto não fosse a mãe ter ligado avisando dele. Seu traje, um smoking preto, era uma peça elegante que combinava a perfeição. O irmão caçula vestia uma versão mini, porém o ar infantil não lhe conferi a imponência do irmão mais velho.

A casa dos Franchescos ficava no bairro Jardim Europa, morada da nata paulista. Um casarão enorme – dava praticamente à volta no quarteirão – encerrado atrás de muros cobertos de trepadeira, altos como palmeiras. Vans e limusines importadas enchiam as vagas enfrente a casa e seguranças de preto faziam a vigília de uma ponta à outra da rua. Enfrente o portão, uma recepcionista de blazer vermelho conferia na lista de convidados o nome dos que chegavam. Esbanjando charme e simpatia, ninguém ousaria ignorar tal beldade, não com quatro homenzarrões postados logo atrás.

- Vocês são...

- Irmãos Miller.

A moça folheia as páginas do caderninho atrás do sobrenome. Achou-o. Pediu a Breno que marcasse um visto. Deu um passo pro lado, imitado pelos seguranças. Breno passa feito um foguete entre eles.

Assim que entrou viu três pequenos postes separadores, interligados por cordas de couro, bloqueando a passagem para a entrada principal da casa. No chão um tapete vermelho seguia por um corredor de vasos de samambaia, indicando o caminho a seguir. Breno resmungou. Nem vira os anfitriões e pressentia que cometera um erro ao atender o pedido da mãe para que viesse. Seguindo o caminho alternativo, os irmãos contornam a casa, saindo nos fundos. Toparam com uma larga porta de vidro temperado aberta, de onde brotavam risos e vozes alegres.

Devia haver umas duzentos pessoas, no mínimo. O salão de festas era enorme, tal como um ginásio, com mesas chiques decoradas com arranjos de flores. Os convidados conversavam ao som de música-popular, enquanto garçons andavam entre a multidão, oferecendo petiscos. Da entrada do salão, Breno procurou visualmente a mãe, a encontrando junto a uma almôndega de paletó. 

Ao ver Breno, o Sr. Franchesco fez um gesto de mão e, no mesmo instante, a música parou.

- Meus amigos – Falou o Sr. Franchesco, cheio de pose, pedindo atenção. – Eis o novo homem da família Miller! – Os convidados aplaudem, o que deixa Breno levemente constrangido. – Será que ele pretende seguir os passos do pai e se tornar policial? – Perguntou, dando tapas enérgicos nas costas do rapaz.

- Sinceramente, não penso no assunto. - Respondeu Breno secamente.

O Sr. Franchesco, cujo rosto lembrava um buldogue, mantem o largo sorriso.

- HÁHÁ! – Gargalhou. – Ele ainda está indeciso quanto à carreira que vai trilhar. Não vamos pressioná-lo, mas é bom não achar que viverá de caridade, viu?

Todos riem – alguns escandalosamente – da piada sem-graça. Breno sorri de leve, suprimindo a vontade de quebrar a socos aqueles dentes feios e sujos. Nisso aproximou-se uma mulher magra, de nariz comprido a fazer inveja ao tucano. 

Ao lado do marido, a Sra. Lucrécia Franchesca parecia um poste. Estando juntos, era difícil dizer quem tinha o aspecto mais bonachão; se a Sra. Lucrecia, alta igual uma girafa, ou o Sr. Franchesco, um hipopótamo engravatado. Breno a cumprimenta e entrega o presente que trouxera.

Um garçom aparece trazendo taças cheias de champanhe. Os Franchescos se servem, mas Breno recusa. Era fato sabido que beber junto ao Sr. Franchesco significava preparar terreno para o surgimento da personalidade menos agradável do homem. 

- Não poupei despesas para essa festa. Temos que saber aproveitar a vida.

- Naturalmente. – Concordou Lucrécia, sem nem agradecer Breno pelo presente. O tipo de mulher que não se veria arrumando a própria cama com receio de arranhar o esmalte ou machucar as cutículas. – Depois do ano-novo viajaremos para a Itália. Aproveitaremos para checar como andam os negócios por lá.

Não é de hoje os Franchescos terem fama no mundo dos negócios, nem de ontem que se consideravam tão populares quanto Jesus. Breno sempre achou que foram os bens patrimoniais de ambos que os uniram em sagrado matrimônio. O Sr. Franchesco era dono de várias redes de restaurante pelo Brasil. Já a Sra. Franchesca firmara-se no ramo das jóias, tendo joalherias em cada uma das principais cidades de cada estado do país. Juntando as fortunas, os dois construíram um império de redes de hotelarias – muitas fora do Brasil – resort, fazendas, chácaras e sítios. 

Breno os detestava, mas era o Sr. Franchesco de quem mais sentia aversão. O gordo de rosto flácido e sorriso nauseante, tinha por péssimo hábito fazer piadas nos momentos mais impróprios. Particularmente duas ocasiões permanecem vivas na memória do rapaz. Durante um enterro, enquanto desciam o caixão, todos em redor embargados pela emoção das lagrimas, eis que falou em voz monótona alta arrastada: “– Morreu perdoado dos pecados, mas não das dividas. O bandido caloteiro vai passa a perna em São Pedro”. Ouve quem tossiu para disfarçar o constrangimento. No casamento de Adam, filho mais velho dos Franchescos, o pai não perdoou e quando os noivos deixavam a igreja, atacou de leiloista: “– Conhece as regras filhão, paga R$2.000,00 pra realizar suas orgias. Ofereço R$5.000,00 R$5.000,00!!” Criou-se enorme mal-estar entre as famílias que durante três dias não se falaram. Depois tudo foi aparentemente esquecido.

- Vou dar uma volta por aí.

- Fique à vontade... Mas não muito. – E pôs-se a rir o Sr. Franchesco, a papada chacoalhando horrivelmente como se um rato se debatesse ali dentro. Como Breno desejou que ele sofresse um infarto. Seria o melhor presente que ganharia.

Deixando o irmão mais novo ser o centro das atenções mais que indesejadas do Sr. Franchesco, Breno saiu andando por entre as pessoas, aparentando só querer se isolar. Resolveu sair do salão. Fazia frio, um frio gostoso. Decidiu que ficaria por ali pelo tempo que fosse necessário.

- Breno Miller – Chamou uma voz feminina.

Breno virou-se, ficando cara a cara com uma jovem de traços orientais.

- Sou Priscilla Hong. – Apresentou-se a jovem de olhos puxados e vestido cetim-rosa longo, fazendo uma pomposa reverência.

Breno nem liga para o cumprimento exagerado que a moça lhe faz.

- Pelo sobrenome, suponho que pertença à família Hong.

- Sim – Confirmou Priscilla. – Não sabe o quanto me alegra que tenha ouvido falar de minha família. Sabe, falei de você pro meu avô, coisas boas. Um dia ele gostaria que eu o levasse para conhecê-lo.

- O grande mestre do Dojo Kuronaya deseja me conhecer?

- Sim – Os olhos cor-de-ameixa faiscavam. – Tenho certeza de que ele o aceitará como aluno.

- Tentando ganhar o coração de Breno? Que pouca vergonha!

Aproximou-se outra jovem, de vestido azul sem alça, ornado com brilhantes. Seu sorriso é confiante, próprio de quem sabe o que quer e não mede esforços para conseguir.

- Não falei nada de mais, Karina. – Disse Priscilla com rispidez. – Ao contrário de você, Breno e eu partilhamos dos mesmos gostos.

- Aiai. – Suspirou Karina. – Pra que usar esse termo formal? Vai acostumar mal meu Breno. – Disse fogosa, acariciando o rosto de Breno com as costas da mão.

- Não vejo escrito em nenhum lugar que Breno pertence a você. – Retrucou Priscilla. – Devia parar de se achar e saber se comportar, oferecida.

A veia na testa de Karina engrossou.

- Oferecida – Disse grosseira, parando com o carinho. – não me culpe se sei me vestir bem, querida, enquanto você parece uma morta de fome!

Os lábios de Priscilla se contraem.

- A família Hong tem mais decência num dedo do que você tem no corpo todo!!

Breno não se sentia à vontade. Saiu de fininho, discretamente, voltando para o salão. Já era bastante ruim estar na casa de pessoas de quem não gostava. A última coisa que queria era o Sr. Franchesco dar o ar da graça. Não tinha interesse amoroso por nenhuma das duas, porém sempre que acontecia dos três se encontrarem, as duas disputavam-no como um troféu. Aproximou-se da mesa do bufê e experimentou um salgadinho crocante. E fingiu que não ouvia os gritos nem seu nome sendo dito a cada cinco ou seis palavrões.

- A exceção daquilo, o senhor Franchesco sabe como dar uma festa.

Breno não notara antes aquele homenzarrão tão perto. Não o conhecia – nunca o vira antes – mas alguma coisa nele lhe dizia estar diante de um integrante daquelas organizações retratadas em filmes antigos, tipo máfia ou yakuza, não pela conduta mau-caráter e sim pelo jeito incrivelmente cordial. Alto, devia ter por volta de 1,90, cabelos prateados compridos, na forma de um bem-cuidado rabo-de-cavalo.

- Quem é você?

- Me chamo Yamato – E estendeu a mão para apertar a de Breno. – É popular com as garotas. – Comentou brincando. Tinha um aperto forte.

Breno ficou visivelmente interessado no homenzarrão. Ia perguntar “É amigo dos Franchesco?”, mas foi atropelado por “Sua Anorexa Sonsa!” disparado por Karina à Priscilla. Não satisfeita, tentou arrancar o colar de perolas do pescoço de Priscilla, que revidou a agressão com um cuspe. Familiares das duas moças intervieram, conseguindo separá-las, a tempo de evitar que a discussão se deteriorasse mais, ou que o Sr. Franchesco surgisse.

- Não vai ver como elas estão?

- Se elas não sabem se portar, que não tivessem vindo. – Diz Breno insensível, vendo Karina pegar uma escova e tentar endireitar o penteado desfeito e Priscilla recebendo a solidariedade da mãe, a maquilagem borrada por causa das lágrimas. – É amigo dos Franchesco?

- Se dissesse que somos grandes amigos estaria mentindo. – Responde Yamato. – Estou aqui a negócios. Agora, se tivesse perguntado minha relação com seu pai, diria sim, fomos bons amigos.

- Conheceu meu pai?

- Ah sim. – Confirmou Yamato, tirando os óculos de lentes escuras, revelando um par de olhos cor de âmbar. – Ele foi um grande homem. Deve ter muito orgulho dele.

Breno não saberia dizer o que o intrigou mais, se o fato daquele estranho, nunca mencionado por sua mãe, conhecer tão bem as virtudes de seu pai, ou justamente por ele não parecer um estranho.

- Diga-me, que está achando da festa?

- Interessante. – Respondeu Breno visivelmente mentindo.

Yamato notou o desinteresse porque mudou de assunto.

- Há pouco falei com sua mãe. Ela me disse que você pratica artes-marciais e que é o melhor aluno de um tal Sensei.

- O senhor o conhece?

- Só de histórias. E você? Como é seu relacionamento com ele?

- Costumava ser bom. Digo isso porque deixei de ser seu aluno.

Yamato interessou-se. – Se não for intromissão de minha parte, posso saber o motivo?

- Nossas opiniões divergem – Breno se solta, falando com a naturalidade de uma conversa entre amigos. – Ele acha que poder não é tudo. Eu penso diferente.

- Hum – Yamato interessou-se mais. – E o que pensa fazer?

- Não sei. – Respondeu Breno, olhando a multidão com ar perdido. – Talvez faça faculdade e...

- Por fim a carreira de lutador? – Yamato interrompe. –Há um ditado japonês que diz; A Águia deve voar... a Carpa nadar... e o Samurai lutar. Seria um desperdício matar seus talentos por se sentir incompreendido. Ao vê-lo tive 100% de convicção: você não foi feito para este mundo de hipócritas diplomatas, mas para as batalhas, única e exclusivamente.

Breno olhou o homenzarrão com interesse ainda maior.

- Pode me ajudar?

- Talvez – Diz Yamato, arqueando levemente a sobrancelha direita.

A noite passa. O Sr. Franchesco não sabia dosar a quantidade de vinho, bebia de encher a moringa. Não tardou para os efeitos começarem a manifestar, com resultados negativos. Passou a se enxergar como um verdadeiro sultão no harém, cortejando algumas das convidadas e filhas de seus sócios, inclusive. Foi preciso seus filhos Adam e Raoul interviessem. A festa, no entanto, prosseguiu normalmente. A mãe de Breno foi conversar com a Sra. Franchesca, enquanto o irmão mais novo trocava risinhos com Francisca, à filha caçula e única criança da família Franchesco.

Breno e Yamato conversavam num canto afastado, de onde assistiram toda cena. Breno evitou rir, escondendo o prazer que sentira tomando um gole de vinho.

- Veja como o porco se comporta. – Disse com aspereza, vendo os filhos carregarem o pai escada acima. – Esse é um homem que não faria falta ao mundo se morresse.

Yamato nada diz, mas pareceu concordar.

Breno que achava a festa um tédio sem fim, tinha uma conversa agradável com alguém que conhecera fazia uma hora. Yamato contou mais sobre o motivo de estar ali. A relação entre ele e o Sr. Franchesco era puramente comercial, um alivio para Breno que não imaginava Yamato e o Sr. Franchesco como amigos se embebedando. Yamato representava acionistas da Air Control World, uma conceituada empresa de aviação comercial e turística, com filiais espalhadas pelo mundo. A missão de Yamato era justamente dar prosseguimento ao ritmo expansionista da empresa, e ele obtivera conhecimento de que um amigo do Sr. Franchesco há muito sonhava vender a companhia aérea que tinha. A intenção era abrir a primeira filial no estado de São Paulo e se fixar como uma companhia aérea de qualidade, acessível a toda população. Não era algo espetacular, porém a forma como Yamato falava fazia o assunto parecer deveras interessante.

Breno não foi esquecido por suas admiradoras e a todo instante, Priscilla e Karina passavam por ele, mudas e interesseiras, sem coragem de abordá-lo na companhia de Yamato.

- Você é cruel rejeitando o amor delas. Conheço homens que dariam tudo o que tem para terem mulheres como essas.

- Não é o que quero. – Breno tomou de um gole o resto de vinho, ignorando o olhar “podemos conversar?”, de Karina e Priscilla. – Conte-me como faço para obter poder.

- Não é tão simples. – Yamato explica. – O poder é algo que apenas os fortes conquistam. Tem muito a ver com o desejo particular. Pode-se adquirir poder para exigir respeito, derrotar um inimigo, conquistar um país. Sua força de vontade determina o nível que alcançara. – Yamato tinha o dom de prender a atenção. Cada palavra sua envolvia Breno como uma aranha enredando a mosca em ceda.

- Os acionistas que represento comandam ações que, com o tempo, inverterão a balança de poder entre as nações dominantes. Avançamos no tabuleiro, conquistando posições estratégicas. A hora do xeque-mate não está longe. Quer ter poder? Posso ajudá-lo, se prometer confiar em mim.

Breno não pensa duas vezes: - Eu confio.

Yamato sorriu satisfeito.





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