A Tia que veio para ficar

Som de campainha. Dois toques curtos.

- É aqui?

- Vizinho.

- Não, não é no vizinho.

- Ouça o latido dos cachorros.

- Eles não têm cachorros.

Novamente a campainha. Três toques.

- É aqui.

- Atende lá.

- Vá você.

- Você ta mais perto da porta.

- Te dei meu sanduíche.

Raiden não queria levantar. Custara a dormir novamente, e estava sonhando que finalmente revelava o que sentia por Letícia, e ela correspondia.

Dessa vez não foi a campainha. O som, trilha sonora Garota de Ipanema, vinha do celular sobre o criado mudo. Com má vontade, Raiden tateou as cegas, em busca do aparelho. Ergueu os olhos para a tela e então pulou, quase batendo a cabeça no beliche de cima.

- Tia Laura está lá fora.

Leuco pulou da cama, literalmente, por pouco aterrissando encima do irmão. Ao abrirem a porta de casa, avistaram frente o portão de casa uma senhora bochechuda de cabelos castanho cheios, olhando rabiolas enroscadas em fios de alta tensão. 

Raiden é mais rápido que o irmão. De posse do molho de chaves abriu o portão para receber; - Tia Laura, bom-dia, feliz natal!

- Bom-dia, Raiden, feliz natal! Ai, espero não ter acordado vocês.

- Que nada. - Disse Raiden animado, ciente que o cabelo desarrumado, as remelas e marcas de travesseiro diziam o contrário.

Laura era naturalmente uma mulher alegre, muito embora motivos não lhe faltassem para fazê-la infeliz. Já teve hérnia epigástrica, pedra nos rins, passou por cirurgia para remoção de um câncer no pâncreas e, ano passado, Matraca, sua calopsita de estimação, morreu após cinquenta e cinco anos. 

Ainda assim, mantinha humor elevado como poucos conseguiriam. Não por coincidência Laura geria a Pequenos Tesouros, ONG que cuida de crianças em situação de risco.
 
- Cada vez que os vejo, parecem mais lindos. – Elogia a tia, dando um abraço de jiboia nos sobrinhos.

- O-Obrigado, tia. – Sorriu Raiden. 

- Vamos ajuda-la com as malas.

Foi uma surpresa e tanto para Leuco e Raiden ao levantar os quatro malões. Parecia que havia sacos de cimentos no lugar de roupas. 

- Por onde andará Letícia?

- Ela saiu. Esse ano a Pequenos Tesouros foi visitar orfanatos. – E naquele instante Raiden desejou também estar prestando serviço comunitário.

- Ah, é. Mas minha mana ta, não é?

- A mamãe ta no quarto. – Respondeu Leuco, as bochechas de um estranho colorido amarelado.

Laura foi na frente, seguida por Raiden e Leuco levando os malões. 

Pobre Linda. Debilitada, aparentava ainda mais fragilidade envolta nos braços da irmã.

Laura parecia um hamster vestido. Os braços gordos eram o dobro dos de Linda, as bochechas salientes de leve rosado natural. Não era uma mulher de idade, mas a echarpe sobre seus ombros lhe conferia ar de senhora. O cabelo cheio lembrava uma couve-flor, em nada se assemelhando ao cabelo escorrido estilo espaguete de Linda.

Os irmãos Ferreira deixam o quarto da mãe após a tia se instalar. Foram a garagem de onde saíram com pinceis, rolos de jornais velhos, latas de tinta e lixas.

Hoje o portão da frente será pintado, tarefa para ter sido feita bem antes do natal, no dia das mães, como presente a Linda, porém a preguiça reservou planos próprios, e os irmãos trocaram a pintura por levar a mãe a um passeio a praia.

Os irmãos forram de jornais velhos o chão embaixo do portão, quando tia Laura aparece, pedindo para dar uma palavrinha. 

- Algum problema tia? – Raiden perguntou quando entraram na cozinha.

- Não, querido, problema nenhum. – Tia Laura olhava os sobrinhos, preocupada. – Estive pensando. Vocês terminaram a escola, que pensam fazer daqui pra frente?

- Hum, continuar morando aqui com a mamãe. – Respondeu Leuco humorado.

- Sim, sim – Concordou tia Laura. – O que pergunto é como pensam viver?

- A senhora fala trabalhar?

- Bem, sim.

- Ah, se o caso é esse, seu Manoel volta de férias ano que vem.

- E o seu Beto. – Lembrou Raiden.

Seu Manoel, o quitandeiro do bairro, com frequência, contatava Raiden e Leuco para alguns bicos – quase sempre envolvendo descarregar mercadoria do caminhão. Beto, apelido Alemão, era dono da oficina mecânica. E ficava feliz, de brilhar os olhos, quando um dos irmãos aparecia. Sempre acontecia de um carro ou dois apresentar problema de vazamento na parte debaixo e um dos irmãos Ferreira fazia a vez de elevador automotivo, suspendendo o veículo.

Tia Laura conhecia os sujeitos, e apesar de não ter queixas esperava que os sobrinhos aspirassem realizações maiores que viver por uns trocados, carregando peso.

- Vocês prestam importantes serviços à comunidade. – Tia Laura concordou. – Mas quero que olhem com mais carinho para si mesmos. Vocês são tão inteligentes, tão cheios de potencial. Procurem coisa melhor. Façam cursos profissionalizantes.

- Mas quem cuidaria da mamãe?

- Podemos contratar um cuidador. Entendam, não quero que desamparem a mãe de vocês, longe disso, quero que progridam na vida. Linda também gostaria disso.

- A senhora acha que podemos progredir mais? – Raiden perguntou.

- Nem imagina o quanto. – Diz tia Laura, sorrindo.

Tia Laura considerava uma benção os sobrinhos. Notara que eram especiais, diferentes da grossa maioria das crianças, e que eram portadores de estranhas aptidões. Aceitou a matrícula dos meninos no dojo do Sensei, pois era óbvio a necessidade de disciplina para controlar seus dons. E agradecia a Deus, todos os dias, por tê-los livrado de servir o exército. A última coisa que queria era ver os amáveis sobrinhos transformados em armas militares.

Com o término da conversa, os irmãos voltam para fora, pra junto do portão.

- É, a tia tem razão. – Reconhece Leuco, pensativo, enquanto abria o portão.

- Ei, aonde vai? – Perguntou Raiden.

- Ah, vou dar um pulo no dojo.

- E eu vou fazer todo o serviço sozinho?

A reclamação de Raiden perde-se no vento, o irmão atravessara a rua correndo, sem olhar para trás. 

Raiden decide fazer o serviço. Usaria isso para se gabar ao irmão.

No fundo, Raiden concordava com tia Laura. Queria condições de dar uma vida melhor a mãe, vida essa nunca viria se continuasse alugando seu tempo vago prestando bicos a vizinhos por ninharia. Precisava almejar mais. Se tinha o potencial que a tia alegava, precisava achar um modo de trazê-lo à tona, e rápido.





CONTINUA...