Um Contador de História

Como nasce um contador de histórias? Do modo mais simples possível, contando fatos. Você não precisa quebrar a cabeça imaginando um cenário fantástico para sua história. Até algo simples como voltar da padaria, pode render um enredo e tanto.

Relógio das Ilusões


Corro como o nosso saudoso Ayrton Senna. Não, não sou corredor nem tenho pretensão de ser.

Moro em uma cidade grande e sou office-boy, meu serviço tem que ser rápido pára não ser o último a chegar. Na firma é uma aposta de todo o dia contra o meu relógio. Ele é um inimigo implacável que não me poupa nunca.

Certa vez, quis pregar-lhe uma peça. Acordaria primeiro que ele, foi uma decisão tomada enquanto via um filme de mistério na televisão.

Tic, tac, tic opa! Grande, acordei sem que ele percebesse. Corri, fui lavar o rosto. Minha mãe já estava na cozinha, preparando o café. Cheirinho bom! Penteei o cabelo e fui me sentar à mesa com ela, quanto tempo não faço isso, não por mim, é que ele nunca me dá tempo. 

Tomo café com leite, pão com manteira e queijo... sou louco por queijo. Se eu não fosse humano seria um rato. Minha mãe me lembra que estou quase na hora.

Consegui! Consegui! Tenho que ir acordar ele. Pego minha pasta, meu passe e chego junto dele.

- Ei, você não vai hoje, amigão?

- Hein? Que horas são?

- Você pergunta para mim? Olha pra você, dormindo até agora! Vamos, está na hora!

- Calma, amigo... não se iluda, eu nunca atraso.

- Não, é? Vamos lá, chega de papo.

No ponto, não encontro ninguém. Nenhum dos meu amigos de luta do dia à dia. Estou adiantado. Ótimo!

Chega o ônibus. Vazio. Meu Deus, não acredito! É muita manteiga no meu pão, como diria meu colega. Chego no serviço, bato o ponto, pego o malote, e parto para a luta. É agora, digo para meu amigão. Tomo o ônibus mais uma vez. É na cidade que tenho que ir. Perdão, no centro da cidade. Quando digo cidade, me perguntam: e onde você mora? No interior?

Pensando bem, eu gostaria de morar no interior, em uma cidade em que não tivesse tanto corre-corre, onde tudo fosse mais perto.

Me lembro que minha mãe pediu que eu visse o preço de um creme para ela. Minha mãe é assim: vaidosa, meiga, carinhosa, uma mãe e tanto. Tenho tempo, vou ver o preço para ela.

Chego ao meu destino. Tenho que esperar um pouco para abrir a firma. Talvez tenha vindo muito cedo. Vejo um parquinho, tenho tempo, vou esperar lá. Olha, um carrossel! Sempre quis andar de carrossel. Por que não agora? Não tem ninguém mesmo lá... Vou. Brinco até não poder mais. Balanço, gira-gira... Uma beleza. Vejo uma barraquinha de algodão-doce. Lembro que minha mãe é louca por isso. Penso em levar um para ela. Meu irmãozinho ia adorar isso aqui. É demais, cara!

Vejo uns passarinhos, parecem tão felizes, tem asas verdes. Não são grandes, um pouco menores que sabiás. Engraçado, nunca reparei que tinha pássaros na cidade. Sempre tão fria e distante. Isto é um bom sinal... Será que estamos enfim tomando gosto pela ecologia? Será?

Volto para a firma, deixo os papéis e vou embora. Mas sinto uma vontade louca de voltar ao parque, e brincar novamente em todos os brinquedos que lá vi. Mas o dever me chama, rodo o dia todo pela cidade, mas não consigo ficar cansado.

Cinco horas, pego o ônibus de volta para a casa. Tá cedo, ainda dá tempo de passar no fliperama. Meia hora, talvez, não vai fazer diferença. Chego depois em casa, tomo banho e vou para a escola. Cedo ainda, vou telefonar para minha namorada para ir com ela à escola. Cedo ainda...

- José, acordo meu filho. O filme já acabou, e você vai ficar com dor no pescoço. Vai dormir na cama, já está arrumada!

Levanto, vou para o quarto, olho na escrivaninha e vejo ele: tic, tac, tic, tac, tic, tac...

- Não falei? Eu não atraso nunca... Peguei você! - disse o relógio.

- Pode ser...


Fim




Viram? Uma história pode ter emoção aproveitando fatos dos mais improváveis. Foi justamente assim que nasceu meu primeiro gibizinho. Um trabalho de escola para a 5ª série. Podia ser feito em grupo ou dupla. Meu amigo ficou responsável pela revisão e eu pela edição. A história girava em torna de um office-boy sonhador decidido a passar a perna no relógio.


Isso que vocês veem ai do lado esquerdo é uma relíquia de tempos imemoriais (risos). Feito em papel sulfite e grampeado, as frases foram redigidas em máquina de escrever. A imagem de um relógio de pêndulo é meramente ilustrativa, porque no gibi ele era um relógio despertador (como esse do lado direito).

Apesar de conter uns erros de português, esse trabalho nos fez ganhar um "A". Quem vê pode dizer que a professora foi boazinha em ter dado uma nota boa (boazinha até demais). Mas o objetivo desse projeto não foi reconhecer potenciais escritores/ ilustradores. Foi fazer algo que cada vez menos se nota: estimular a imaginação.

"Naqueles tempos", década de 90, as coisas eram mais simples, digamos assim. Computador

(quem tinha) era usado para se jogar joguinho e olhe lá. As escolas estimulavam a criatividade dos alunos. E os alunos (a maioria) se sentiam estimulados. Hoje meio que banalizamos a importância de exercitar a criatividade precoce.

Obs: Trabalho foi tão bem aceito que a professora duvidou que tivéssemos feito sozinhos.

Saber desenhar segue o mesmo conceito. Antigamente, meus desenhos não eram melhor que isso. Desenhar pessoas nunca foi minha especialidade. Um círculo, encima dum palito, com duas varetinhas como braços e pernas e tava pronto o personagem. Desenhar animais também era um martírio. Conseguia desenhar razoavelmente bem o corpo, mas braços/ mãos/ pernas e pés sem chance. Para superar essas limitações tive que usar a comum e velha arte de treino. E ainda estou a treinar. 

olhar desconfiado
Meu amigo de fuço molhado Rex (mistura de Rask com vira-lata). Maluco como não tem igual.