Conto - Cadeia alimentar





Ness, o plesiossauro, abriu os olhos sem muita disposição. "Não é hora", pensou enquanto um "disco amarelo" apagado levantava preguiçoso no horizonte distante. No futuro, criaturas pensantes o batizariam de Sol. Na época de Ness, chamavam-no, apenas, de disco amarelo. Voltou a fechar os olhos. Repensava, mentalmente, todo o plano. Hoje voltaria ao mar após dois dias. Voltaria ao lugar onde quase perdera a vida. Precisava, em parte para suprir sua necessidade de comida. Em terra firme não acharia. Só o mar podia suprir sua necessidade de cavalas e mariscos. Só o mar podia mantê-lo, embora essa relação não fosse camarada. O mar não se importava com Ness, como não se importava com as cavalas e mariscos, nem com nada vivo que se mexia e nadasse. Pai cruel que nutria e dava abrigo a filhos, mas não se importava se fossem mortos. 

Ness se mexeu um bocadinho, expulsando uma pedra incômoda sob o ventre. Era inevitável, a praia não era arenosa, mas toda de seixos. Sentia frio. O "disco amarelo" levantou do horizonte, ainda frio. Levaria tempo para aquecer. Isso deu tempo para Ness repensar. Deu a ele oportunidade de reviver. Sim. Dois dias atrás quase pereceu nesse mar cruel. Um inimigo conhecido; Ivan o Terrível. Sim, Ivan, o odioso lagarto marinho, do comprimento, Ness acharia, de um ônibus, se ônibus existissem naquele tempo e Ness visse um. Independente de com o que se parecesse, era fato sabido, ganhar de Ivan o Terrível era impossível. Ness sabia. Seu mundo se dividia em dois tipos simples; quem nasceu favorecido e quem nasceu oprimido. Imutável, imparcial, cruel. Mas Ness acreditava ser possível romper esse ciclo. Tudo dependeria do quão persuasivo seria, porque embora Ivan o Terrível fosse invencível, em termos de força bruta, carecia de pouca inteligência. 

O calor do disco amarelo finalmente alcança Ness, preenchendo-o com sua "mágica". Sentia as células se agitando, o sangue pulsando forte através das veias e artérias. Já sentia mais disposição. Se exercitou. Mexeu uma nadadeira, depois a segunda, depois a terceira, depois o cotoco da quarta. Ness podia senti-la, mesmo sabendo que não estava mais lá. Ness lembrava, Ivan o Terrível a arrancou fora numa bocada. Perdera muito sangue, mas sobrevivera. Arrastou-se para fora daquele mar impiedoso jurando nunca mais voltar. Sustentou essa decisão nas primeiras horas pós o fatal acidente, tendo praticamente esquecido tudo, no dia seguinte, quando a fome bateu-lhe a porta. 

A fome começou a afligi-lo tão persistentemente quanto o enxame de moscas rondando o cotoco onde ficava a nadadeira. Ness fazia o que podia para espantá-las, que no caso era se mexer. Sua pequena cabeça oval ficava no fim de um pescoço longo e rijo. Podia movê-lo, minimamente, para esquerda e para direita. Mas dobrá-lo, impossível. Arrastava o pesado corpanzil de barril, a fim de evitar as moscas, ou pelo menos não deixar que botassem ovos na carne. Sim, Ness já vira o que acontecia quando moscas botavam ovos em carne viva. Nasciam umas criaturinhas esquisitas, larvas, que rastejavam e começavam a devorar a carne do hospedeiro. Em pouco tempo gangrenava, daí matava. "De jeito nenhum", pensava Ness lutando para se manter vivo. O frescor da noite deu alívio dos insetos. Mas a fome persistia. Sem contar a presença sobrenatural persistente de carniceiros. Ness sabia que estavam ali, mesmo sem vê-los. Apareciam no fim do dia perambulando a praia, procurando qualquer coisa abjeta, mas minimamente comestível. Por duas vezes deram mordiscadas na traseira de Ness que os espantou. "Ainda sou forte", pensava orgulhoso. Mas cada vez mais afetado pela inanição, era questão de tempo até a fome sobrepujar a covardia dos carniceiros. 

"Não dá mais, tenho de voltar", pensou Ness, decidido, encarando o mar. Mas no mar estava Ivan o Terrível. Se voltaria tinha de pensar. "Sim, grande e tolo Ivan. Vou tirar proveito". Arquitetou, planejou, repassou tantas vezes quanto lembrava, o que diria ao topar com Ivan. 

O disco amarelo levantou, energizando completamente Ness. Arrastou-se pela praia de seixos, deixando as moscas e carniceiros. Entrou na água, sentindo o mar dar-lhe as boas-vindas. Sentiu o corpo leve, como num sonho, estava em seu elemento. Nadou mais para dentro, afastando-se da praia. Nadou mais, passando a barreira dos arrecifes. Nadou em direção o abismo escuro, de onde uma distinta silhueta corpulenta surgiu; Ivan o Terrível o esperava. 

Ness não se apavorou. Permaneceu firme, a medida que o lagarto marinho gigante se aproximava. Grande como um ônibus, o corpo preto carvão o deixava praticamente invisível nas profundezas de onde, supôs Ness, devia viver. Ivan dava voltas entorno do plesiossauro aleijado, sempre a olha-lo com o olho direito amarelo. "Demônio", pensou Ness tentando projetar segurança, nadando de forma desigual por conta do membro perdido. Ivan nadou pra cima, dando a Ness vislumbre de ver o ventre branco acinzentado. Então voltou a descer.   

"Que fiz para querer-me morto? Certeza tenho de nunca ter atravessado seu caminho. Peço agora, fala a ofensa que fiz a ti". 

Valentia ou burrice? Com certeza nunca antes alguém questionara Ivan. Tanto que demorou a responder, o esforço, pensava Ness, de um cérebro obtuso. 

"A mim nada fizeste. Quanto a meus próximos, fez ofensa imperdoável". 

"Absurda acusação", defendeu-se Ness. "Vivo minha vida. Quem o contrário disser está falseando com a verdade. Diz-me, quem dos teus ofendi?" 

"Matusalém, o velho", revelou Ivan, nadando cada vez mais perto de Ness. "Matusalém, o marisco, a quem devorastes e dele só a concha restou. Matusalém, meu amigo. Pois se a ele não ofereceu clemência, porque eu haveria de oferece-la de ti?" 

Ness nunca respondeu. Pois tão concentrado em viver esquecera-se da lei que regia aquele mar cruel, a mesma que o fez ignorar o direito de viver de Matusalém em causa própria.